Desafio das flores

Já tinha algum tempo que a Haru estava atrás de alguém para jogar hanafuda com ela. Eu sou um apaixonado por baralhos incorrigível, e foi assim que praticamente virei o ano jogando, e jogamos koi-koi por horas, madrugada a dentro.

O hanafuda é um baralho japonês, com 12 naipes de 4 cartas. Conforme ela me ensinava o jogo, eu ia me fascinando com os símbolos. Os jogos tem essa característica, sempre: eles mostram um momento dos símbolos de uma sociedade em uma determinada época.

Não é nada altamente esotérico, mas até hoje, não encontrei um jogo, especialmente de baralho, que não tenha várias camadas de simbolismo e estética para estudar.

E ai eu tive a ideia. E se a gente desenhar um hanafuda durante o ano de 2021?

Como são 4 cartas por mês, e a lógica dos desenhos trabalha com a repetição de elementos, não é um desafio daqueles que ocupam um tempo gigante. E é prazeiroso. Lúdico.

Como eu acho que mais gente além de nós pode se interessar em brincar com a gente, estou escrevendo aqui a proposta.


Desafio das Flores

-Desenhar as cartas equivalentes ao mês atual.

-Postar com a tag #DesafioDasFlores e para a gente encontrar o trabalho uns dos outros.

Para ficar como referência rápida:

Os tipos de cartas são:

– カス Kasu (as menos valiosas), a flor ou planta do mês. Cada naipe/mês tem duas dessas cartas, exceto novembro, que só tem uma, e dezembro, que tem três.

– 短冊Tanzaku(Faixas, fitas), junto com as flores, tem uma fita/faixa. Abril, Maio, Julho e Novembro tem fitas vermelhas sem nada escrito (短冊Tanzaku), Junho, Setembro e Outubro fitas azuis sem nada escrito (青短Aotan) e Janeiro, Fevereiro e Março fitas vermelha com um verso ( 赤短Akatan).

– 種 Tane(Semente) são cartas de “animais” (nem tudo é animal): 鴬Uguisu ou Rouxinol (Fevereiro), 不如帰Hototogisu ou Cuco (Abril), 八橋 Yatsuhashi ou Ponte* (Maio), 蝶 Chô ou Borboletas (Junho), 猪 Inoshishi ou Javali (Julho), 雁 Kari ou Gansos (Agosto), 盃Sakazuki ou copo de Sake (Setembro), 鹿Shika ou Veado (Outubro), 燕 Tsubame ou Andorinha (Novembro).

– 光 Hikari (Brilhantes), são figuras simbolicamente luminosas: um 鶴Tsuru ou grou (Janeiro), 幕Maku ou cortina em frente às flores de cerejeira (Março), 月Tsuki ou Lua cheia (Agosto), 小野道風Ono No Michikaze, o calígrafo, andando na chuva e observando um sapinho (Novembro) e 鳳凰 Hôô ou “fênix” (Dezembro).

* por mais que um yatsuhashi possa ser um elemento arquitetônico bonito e feito com capricho, a palavra para descrever uma pontezinha de madeira sem proteção aqui na minha região é pinguela, e isso me ajudou a entender o que eu estava vendo na carta.

Os naipes são:

松 Matsu(Pinheiro) – 一月Ichigatsu (Janeiro)

‘Matsu ni Tsuru’       ‘Matsu no Tan’       ‘Matsu no Kasu’      ‘Matsu no Kasu’

梅 Ume(Ameixeira) – 二月 Nigatsu (Fevereiro)

 ‘Ume ni Uguisu’      ‘Ume no Tan’     ‘Ume no Kasu’     ‘Ume no Kasu’

桜  Sakura(Cerejeira) – 三月Sangatsu (Março)

‘Sakura ni Maku’      ‘Sakura no Tan’      ‘Sakura no Kasu’    ‘Sakura no Kasu’

藤 Fuji(Glicínia) -四月 Shigatsu (Abril)

‘Fuji ni Kakku’       ‘Fuji no Tan’       ‘Fuji no Kasu’        ‘Fuji no Kasu’

菖蒲 Shobu/Ayame(Íris) -五月 Gogatsu (Maio)

  ‘Ayame ni Yatsuhashi’     ‘Ayame no Tan’     ‘Ayame no Kasu’     ‘Ayame no Kasu’

牡丹 Botan(Peônia) – 六月 Rokugatsu (Junho)

‘Botan ni Chou’    ‘Botan no Tan’    ‘Botan no Kasu’    ‘Botan no Kasu’

萩  Hagi(Lespedeza) – 七月 Shichigatsu (Julho)

‘Hagi ni Inoshishi’     ‘Hagi no Tan’     Hagi no Kasu’     ‘Hagi no Kasu’

薄 Susuki(Eulália, Capim de Prata Chinês, Miscantus) – 八月 Hachigatsu (Agosto)

‘Susuki ni Tsuki’    ‘Susuki ni Kari’   ‘Susuki no Kasu’  ‘Susuki no Kasu’

菊 Kiku(Crisântemo) – 九月 Kugatsu (Setembro)

‘Kiku ni Sakazuki’     ‘Kiku no Tan’       ‘Kiku no Kasu’       ‘Kiku no Kasu’

紅葉 Momiji(Bordo Japonês, Acer) -十月 Jûgatsu (Outubro)

  ‘Momiji ni Shika’      ‘Momiji no Tan’      ‘Momiji no Kasu’      ‘Momiji no Kasu’

柳 Yanagi(Salgueiro) -十一月 Jûichigatsu (Novembro)

‘Yanagi ni Ono no Toufuu’    ‘Yanagi ni Tsubame’     ‘Yanagi no Tan’     ‘Yanagi no Kasu’

桐 Kiri (Paulónia, Árvore da Imperatriz) – 十二月Jûnigatsu (Dezembro)

‘Kiri ni Hooh’         ‘Kiri no Kasu’        ‘Kiri no Kasu’         ‘Kiri no Kasu’

Alguns links interessantes:

Em português:
http://www.uwbk.com.br/entretenimento/87-kokishin-curiosidades/413-hanafuda (foi onde eu peguei os nomes das cartas em ideogramas, porque meu japonês se resume a meia dúzia de palavras faladas)

Em inglês:
http://duarcain.blogspot.com/2013/09/the-twelve-suits-of-hanafuda.html

http://hanafudahawaii.com/gsymbols.html

(sim, o Hanafuda é tradicional no Hawaii por conta da influência da colônia japonesa, mas se tornou um jogo que a geral joga, inclusive com variantes só de lá)

https://namakajiri.net/nikki/the-flowers-of-hanafuda/




(este post está bem tosquinho, mas o mote do blog no ano de 2021 é “melhor feito do que perfeito”)

Emicida e um jeito melhor de ser homem

Eu sou uma pessoa não binária transmasculina. Esse não me declarar simplesmente homem é uma coisa política/filosófica, mas ser homem tbm é parte importante do q sou. Eu já fui mulher, mas não sou. Sou outra coisa, e sou um homem. Uma jornada de Tiresias, que foi mulher por sete anos para ser um homem melhor.

E isso de ser homem pra mim tem muito de curar uma masculinidade ferida pela forma violenta q se espera de ser homem.

É um engano gigante achar que por ser trans uma pessoa não é afetada pela socialização. No meu caso, que sempre ocupei uma zona cinzenta, que sou um homem afeminado, significava ter que me provar “macho” de um jeito autodestrutivo e agressivo. Eu me rasguei inteiro tentando ser o herói de uma história que não era minha, como tantos e tantos caras fazem.

O que eu fiz de coisa idiota para provar que eu dava conta, mesmo que me machucasse por isso.

E os homens públicos, os heróis e personagens e agentes da cultura, reforçavam essas noções. De que homem não expõe sentimento, que resolve tudo na porrada, que não cuida de si nem dos outros.

Nos últimos tempos, eu tenho revisitado e questionado que homem eu quero ser. Quem são minhas referências de força e hombridade.

Emicida é o topo da lista.

Eu gosto demais da música dele, e gosto demais do jeito como se expressa. Eu já tinha essa sensação antes de ver o doc “AmarElo – É tudo pra ontem”, mas agora, aaaaaaah.

Emicida trás uma masculidade outra. Onde a agressividade necessária para viver não gera a reação violenta do senso de superioridade, mas o cuidado e a noção de que temos uma responsa com os outros.

Emicida fala de companheirismo, amizade, de falar de sentimento e sensação com naturalidade. Assumir que chora sem fazer disso um diferencial, mas algo normal.

Até para falar de amor, ele não usa a forma machista que a gente vê tanto na música. Tem uma doçura ali, uma doçura que não se envergonha de ser doce.

Fragilidade, amor e companheirismo como bases de uma masculinidade que nos faz mais, melhor.

Virtuosos como heróis por negar o falso heroísmo suicida que nos impuseram.

Vale inclusive um aparte. Eu estava numa bad sem fim, tão cansado de viver que comentei no twitter que não tinha energia nem de ligar a netflix para ver. Um amigo que também segue a trilha de se reinventar como homem (porque eu tenho a sorte de estar cercado de boy cis que quer ser melhor), e ele disse que ia ver também, que a gente ia ver junto mesmo à distância. Isso me deu a energia para ir ver o doc. Tudo que nóis tem é nóis.

Emicida é acima de tudo, um poeta do cuidado. Tem uma postura despojada nas fotografias, um olhar que é gentil – e gentil quer dizer “da gente”, um de nós, nossa família. O jeito como abraça e toca as pessoas nas cenas do doc grita isso – este é um dos nossos e que sabe o que é ser gente.

A gente precisa de mais homens que falam de sonhos e nascer do sol. E que não fala disso do ponto privilegiado de quem não vê o sol nascer no ônibus, sabe. Porque eu sempre me achei meio trouxa de achar bonito o sol nascendo enquanto eu saia pra trampo, e que meu ódio de trem lotado e capitalismo não deixava o sol menos bonito, sabe.

Emicida e eu temos quase a mesma idade, e meu bairro operário em Mauá não é Vila Cachoeira, e cada lugar é único, sei bem dos privilégios que essa pele clara me comprou, e ainda assim eu me lembro de entrar no Municipal pela primeira vez porque um professor da faculdade decidiu que a gente ia conhecer – porque a gente ia ser professor de arte, tinha que conhecer essas coisas, mas curso noturno, trampando o tempo todo, a gente não tinha grana nem sabia que podia, que tinha o direito de ver, sabe, a gente nunca tinha ido lá, meus pais com quarenta não tinham ido, sabe. O Emicida no palco do municipal de São Paulo é uma coisa tão forte, tão forte, acho que para qualquer um que se permite ver, mas para quem vivenciou esse se sentir estrangeiro nos lugares que deveriam ser de todos é de explodir a cabeça.

Eu me sinto mais à vontade no Sesc Campo Limpo do que no Sesc Paulista, sabe, porque é difícil não se sentir intruso nesses lugares – vim pro centro de São Paulo mas carrego minha história comigo.

E ai está esse homem, falando de respeito aos que abriram caminho e abrindo ele mesmo caminho para quem virá, com uma masculinidade feita de afeto – se deixar afetar, sabe.

A gente precisa muito disso. O homem que eu quero ser é mais Emicida e menos Aquiles.

É um mundo duro demais para a gente ser pedra quando pode ser planta.

A minha vivência não é igual a dele, mas tem uma ressonância gostosa. Quando ele falou da intersecção entre as lutas lgbtq e negra, eu senti essa ressonância validada. E de todo modo, a gente precisa exercitar a admiração por quem segue trilhas diferentes das nossas, de um jeito que não é etnocentrista, não é colonizador. É importante demais.

Quero ser menos Aquiles, e mais Emicida.

Não quero dos homens dentes cerrados e faca em punho. Quero doçura. Cuidar das plantas, do amor, dos irmãos. Quero as pequenas alegrias da vida adulta.

(não, eu não curto a coisa de ficar achando palavra dentro de outra palavra, porque a maioria das pessoas faz isso de um jeito preguiçoso, de rimar amor com dor, sabe. Mas a letra de AmarElo é foda e ele escreve bonito demais, ai eu gosto – assim como a rima mais pobre no lugar certo pode ser a mais bonita)

Combustível

And I’ll see your true colors
Shining through

só uma manhã qualquer

O céu é uma mancha inconstante entre os prédios altos, os ruídos repetitivos e as dúvidas sobre o que virá. Fumo um cigarro mentolado enquanto observo a teimosia das plantas no beiral da janela, a insistência em permanecer.

A luz tem uma cor diferente na primavera. Uma luz gentil, que se infiltra na existência como um filme fotográfico de máquina antiga.

Unicórnios, café com leite, mais uma caixa de livros sendo aberta e catalogada. O cansaço é um pano de fundo constante a que começo a me acostumar – parece que vai ser sempre assim, então ao invés de lutar contra, me adapto. Os dias de um ano estranho se confundem uns com os outros e ao mesmo tempo, cada dia é um fragmento da casa que torno mais meu. Um quadro na parede. Um móvel na cozinha. Uma mudança de planos. Uma prateleira meio torta mas que coloquei sozinho.

Minha casa me alimenta.

O chão de taco, as janelas gigantes, o jeito do prédio com seus sessenta anos.

Eu por muito tempo acreditei ter nascido com defeito de fabricação. Não conseguia me sentir em casa, não entendia o que era essa sensação de pertencer a um lugar. Era sempre um estrangeiro, um exilado. Chega a ser difícil explicar essa sensação. Mas para mim, sempre foi fácil dormir fora, porque a minha casa não era um refúgio, era só… uma casa.

Nunca senti o que descrevem sobre a sensação de voltar para casa depois de viajar. Porque eu nunca desejei voltar.

Eu construi a casa onde morei até ano passado, desenhei, dei palpite. Mas ela nunca despertou essa sensação. Doeu abandonar essa casa que não me abrigava direito e que estava me matando de tristeza, mas que eu tinha investido tanto da minha vida tentando fazer minha e falhando. Não era a dor de sair de casa: era a dor de desistir de fazer daquele lugar minha casa.

E então eu cheguei aqui, no apartamento velho com a eletricidade toda cagada e as janelas enormes que não consigo abrir e fechar sem esforço, mas que está o tempo todo cheio de sol, e tem um armário embutido que tem dezenas de gavetas estreitas tão perfeitas para guardar meus materiais de arte, e onde cada pedacinho tem sido desenhado e recriado para ser meu, e onde a cria tem seu próprio quarto, e onde a gente senta no sofá e conversa sentados na mesa da cozinha, e onde cada pequena coisa ganhou algo de sacramento.

Minha casa me alimenta.

Aprendo a lidar com as marés de ser uma pessoa crônica. Reencontro essa identidade que foi tão fragmentada e que eu preciso fazer um esforço para conseguir identificar, explorar, descobrir quem sou agora. Faço biscoitos e capeletti in brodo. Bordo frases anarquistas e trechos de música. Volto a fazer aquarela, só estudos ainda, círculos e manchas.

Quando passo a noite fora, e volto para cá, pela prima vez na vida, sento no sofá e suspiro com a sensação de chegar em casa.

§§§

Esta blogagem vem conversar com a proposta da Aline Valek e da Gabi Barbosa da #estacaoblogagem com o tema do naipe de Paus do tarô: “O que te sustenta? O que te estimula? O que te dá paixão?”

Registros oníricos I

Quase toda noite sonho com uma mistura do Teatro Antunes Filho e do Anfiteatro Vinícius de Moraes. É a coisa que só a cabeça cansada consegue fazer, porque é difícil pensar em duas experiências mais opostas do que esses dois teatros.


Mas nos sonhos, eu subo uma escada que não existe no fundo da coxia do Antunes Filho, que é um teatro enorme, e lá está o Vinícius, com seu auditório minúsculo e seu palco sem coxias, e o cheiro das cortinas puídas, uma mistura de pó, bolor e tempo que ocupava todo o espaço.


Sempre está cheio de adolescentes. Às vezes eu tenho minha idade hoje, às vezes sou de novo o adolescente que passava mais tempo naquele teatrinho do que em qualquer outro lugar, não só para ver teatro ou fazer aula de teatro mas bom, para tudo. Para existir.
Quase sempre nos sonhos eu estou trabalhando, tentando dar conta de coisas improváveis que surgem de última hora, ou fazendo os corres cotidianos de fazer as coisas acontecerem sem sobressaltos para o público.

Tudo é sempre muito escuro, porque mesmo fora da caixa preta dos dois teatros, tudo é uma sucessão de caixas pretas de teatro, todos os ambientes que aparecem nos sonhos são caixas e caixas pretas, como se tudo que acontecesse fosse de algum modo uma encenação no centro de um palco tanto quanto a realidade.


Às vezes, para deixar tudo mais confuso e simbólico, se soma o auditório da faculdade. E a sala da EMIA onde eu vi pela primeira vez um ensaio de uma peça do Beckett. Mas aqui a sala é também uma caixa preta, embora eu esteja sentado na janela do jeitinho que eu fazia durante o estágio.

E todos os lugares estão interligados pela coxia do teatro Antunes Filho.

Eu sinto uma falta daquele teatro. De beijar a ponta dos dedos e tocar o chão do palco pedindo a benção para Dionísio.

Quase todos os meus sonhos são pesadelos. Na verdade o que é parte do clima de pesadelo é a sensação de desconfiança e perigo nessas caixas pretas todas, quando teatros sempre foram meu lugar seguro.


Existe sempre um componente de dissolução nos sonhos. Algo que eu costumo identificar como “a luz estar errada” que é um sinal de que a existência não tem a solidez necessária para se pisar nela. De algum jeito, tudo está cercado por uma sensação que é familiar demais de não conseguir compreender o subtexto do mundo à minha volta.

Embora os sonhos sejam sempre lotados de pessoas, eu falo e interajo com poucas delas, sempre com algo de urgente, um tom de correria e incerteza, sem contato físico.

O isolamento tem me feito ver o quanto ao mesmo tempo que o contato físico pode ser difícil para mim, eu preciso estar cercado de pessoas. Eu gosto de pessoas, quero estar perto delas, quero conviver com elas. Mas no sonho, as pessoas me dão ainda mais medo do que já me dão no mundo real. Existe algo de ameaçador que perpassa toda aproximação, como se eu fosse muito, muito frágil, e as pessoas muito, muito fortes.

Escadas improvisadas e caixas pretas de teatro. É disso que meu subconsciente é feito nestes tempos.

ficção relâmpago – madrugada

Quem tinha medo da noite não conhecia aquele espaço de tempo entre o início da manhã e o nascer do sol em que a realidade parecia sombreada de cinza e a realidade resvalava entre as pedras cobertas de sereno do calçamento, quando é preciso, de modo absoluto, não olhar para trás quando escuta passos, porque é muito provável que os passos não sejam de nada visível, e o ar não tem a transparência devida. Ninguém fala do medo das coisas das primeiras horas, como se houvesse um acordo tácito para encobrir essa sensação de erro que som, cor e distância tem durante esse tempo liminar que não é território de ninguém.
Talvez o dia seja de deus e a noite do diabo, mas nesse espaço de tempo que não é nem dia ou noite, é preciso sinos de igreja e cantos para evitar que a vida pegue uma entrada para uma rua que não devia estar ali, uma estrada curvando para o lado errado, uma terceira linha de trilhos que não faz parte do mapa da via. Porque essa hora é de ninguém, e é melhor não falar em voz alta o tipo de medo que murmura por trás do poste, da boca da gárgula afogada de chuva, o que faz os gatos correrem assustados nas vielas, estouros de motocicletas que não estão lá e estranhos usando chapéus onde parece que se esconde uma ausência de olhos e sobrancelhas.
Aprendi a evitar olhar a rua pela janela quando desperto, porque quando se vê certas coisas, elas enxergam de volta. Uma distração, e você enxerga a presença saltando pedaços do mundo que vemos, cada vez parado mais perto, até estar no poste logo antes da prédio.

Dia da luta camponesa

Em 1996, eu era um bichinho perdido de olhos enormes e que tinha três estado de espírito: ódio, choro e vazio. E uma das coisas que me pesavam o coração, pesa até hoje. A absoluta injustiça da sociedade ocidental, fundamentada no capitalismo. Toda vez que falam que “ah deve ter um adulto por trás” de uma menina como Greta, Mari Copeni ou Tokata Iron Eyes, ou a geral da nação dos movimentos de ocupação das escolas no Brasil, eu penso em como essas pessoas não conviveram com o tipo de molecada que eu convivi, e que eu fui. A natureza da adolescência é a natureza da luta.

E naquela época eu já acreditava que, independente de qualquer questão que o movimento tenha, a resposta a “tudo isso que está aí”, no Brasil, é o MST.

Acompanhei com horror o massacre de Eldorado do Carajás.

A marcha indo para Belém reivindicar as terras improdutivas (que acabariam sendo entregues aos acampados depois de muita luta). 21 mortos, mais de 100 feridos, muitos que levam sequelas no corpo pelo resto da vida. A violência policial que chegou com ordens para matar. As execuções. Os corpos vilipendiados. É difícil explicar por onde começa o choque com a história, com um dos maiores crimes da história recente do país. Mas provavelmente para mim o que mais pesou na época foi que um dos assassinados era um rapaz de 17 anos, chamado Oziel.

E para a gente adolescente ativista, era como se fosse um de nós, porque era um dos nossos. Era um olhar entre nós e saber que poderia ter sido alguém igual a gente, igual a nossos amigos. E foi uma época pesada porque nós tinhamos perdidos alguns dos nossos, mesmo que não para esse tipo de violência, mas as feridas estavam abertas. É uma dessas pessoas que inspirou e inspira, e merece ter sempre sua memória honrada.

Eu sempre digo que viver é um ato político. Hoje, espero chegarem aqui em casa as minhas encomendas do Armazém do Campo, que vende os produtos produzidos em assentamentos. Comida orgânica mais barata do que a comida orgânica de qualquer mercado, mas essa comida aqui tem gosto de liberdade.

Acho que todo mundo deveria estudar o massacre. Entender porque tanto no BR quanto no mundo chocou as pessoas. Como tornou 17 de abril o Dia de Luta Pela Terra.

Recomendo que sigam o Instagram do MST, e leiam o portal deles. Que conheçam o trabalho da Via Campesina.

São muitas histórias a serem contadas.

Hoje, neste ano, eles chamam para que a gente “fique em casa mas não em silêncio”. Por isso falo do assunto. Por isso lembro dos mortos.
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E se faço aqui, onde falo de vida criativa é porque se viver é um ato político, tudo que eu crio é marcado pelas coisas que conheço, que vivi, que aprendo e que enxergo do mundo.

A luta camponesa é uma das coisas mais fortes e mais bonitas. E é a pequena agricultura familiar que nos alimenta e sustenta de verdade, batendo de frente ao agronegócio.

Cada coisa que chega na nossa mesa é uma história a ser contada.

Mapas

Escrito em março de 2017, depois de ler este artigo — http://www.newyorker.com/books/page-turner/the-allure-of-the-map

Não a toa, pensava em se apaixonar como em cartografia. Atlas e cartas estelares, e seus olhos fechados desenhavam mapas dos corpos que tinha tocado. Alguns mapas, mal rabiscados em versos de guardanapos, do tipo que se perde no chão do carro depois de encontrar o lugar certo. Outros, cuidadosos trabalhos de arte, como os que se escondem em escaninhos de mesas de pata de leão e madeira escura, com detalhes pontilhados de histórias que viram acontecer.

Mas era sempre em geografia que pensava quando os olhos se fechavam na memória de quem tinha tocado. O rendilhado áspero das dobras do papel, como marcas de unha que formavam desenhos. O desenho secreto entre as árvores da floresta em um mapa medieval como aquela mancha na pele que tinha descoberto quase ao acaso. Diziam que seu toque era suave, só porque respeitava os mapas com uma devoção ancestral dos que tinham feito da estrada sua moradia. E agora, que o corpo era forçado àquele exílio inverso, de ficar parado no mesmo lugar, mapeava os corpos que tocava e que eram sua própria forma de conhecer as estradas.

Montanhas desenhadas e cartas estelares.

Havia aqueles que a memória desgastava, como dobrada tempo demais em algum porta luvas. Mesmo assim, a forma podia ser reconhecida. O traçado de ruas das quais os nomes tinham se tornado borrões. E os que mesmo perdidos por muito tempo, de algum modo se conservavam, desenrolados com lentidão de dentro da lembrança, a imagem refletida ali quase intocada pelos anos acumulados, a aquarela perdendo a cor mas as linhas escuras não deixando esquecer. Uma curva, uma costela, a pinta sobre o osso da bacia. A forma de um polegar que tateava suas costas desenhando também um mapa que sabia, ah, sabia, era também desenrolado de dentro da memória de quando em quando.

Mapas físicos com suas nuances de cor para indicar florestas e cerrados, legendas de quartzo e amplitudes, língua como queda d’água e anotações à mão de trilhas que tinha com paciência descoberto com o roçar das digitais. Estradas atravessando o campo aberto, a marca não escrita do caminho que levava de volta para casa.

E intrincadas geografias se desenhavam sob as pálpebras, pescada da memória a carta estelar que tão rápido tinha ficado impressa nos olhos. O sombrio do cabelo denso como as manchas escuras do céu, nevos como estrelas, boca como nebulosa. Cartas estelares para aprender a olhar mais longe, buscando sentido de oriente para quem sonhava ser barco. Conhecer o céu para não perder o caminho no mar, ele mesma carta náutica, correntezas e abismos e cordilheiras invisíveis.

Fazia mapas dos corpos que tocava. Arte secreta e sussurrada aprendida de ver, o sol da tarde filtrado pela janela de guilhotina, o tempo que dançava nas pontas dos dedos e nas páginas dos livros. O aprendizado dos tipos de papel e das tintas alquímicas, a medição imprecisa e escala perfeita, o movimento das marés e da lua, o espaço vazio que contava mais do que o risco, os traços do labirinto, as anotações na borda daquilo que não podia ser expresso de outro jeito.

Quando a palavra escapava e era apenas uma pequena sombra daquele exílio às avessas, deixava o corpo afundar entre os lençóis, e buscava novas cartografias, seu mundo se esticando como o mapa preguiçoso sendo desamassado, o dedo que corria na pele e que encontrava o caminho das estradas do mundo por onde não podia partir.

Entrando no ar a campanha – Violetas, Unicórnios & Rinocerontes

Eu sempre gostei do termo viado. É uma palavra com que eu me identifico, porque viado vem de transviado, e eu sempre fui desviante.

Violetas, Unicórnios e Rinocerontes é uma coletânea de contos que reúne 15 desviantes da norma, 15 criadores de outras realidades, 15 pessoas LGBTQA+ . Alexey Dodsworth, Atena Beauvoir Roveda, Camila Fernandes, Celso Duvecchi, Claudia Dugim, Cristina Lasaitis, Naná de Lucca, Priscilla Matsumoto, eu mesmo, Sasha Cardoso, Sol Coelho, Saskia Sá, Thiago Ambrósio Lage, Tiago Toy, Ton Borges.

Lançada pela Editora Patuá no selo Futuro Infinito, de curadoria do Luiz Bras, o livro é organizado por Claudia Dugin. Quando me chamou, eu de cara me apaixonei pelo projeto.

Afinal, minha primeira ficção científica publicada foi em uma coleção LGBTQ – A Fantástica Literatura Queer.

O projeto foi lançado hoje no Catarse, e contribuir dá direito a uns pacotes bons demais e uma economia para quem quer completar a coleção Futuro Infinito.
Então vem junto com a gente, e contribua no Catarse.

Voltando de novo e de novo e de novo…

Eu aprendi a escrever, pintar ou fazer arte em geral, de um jeito bem característico. Sou cria de oficina e atelier coletivo. Esse negócio do artista isolado na torre é a coisa mais alienígena que pode existir para mim.

O lado bom é que eu consigo produzir com mais velocidade porque me acostumei ao ritmo de faz- mostra – discute – refaz. O lado ruim é que velocidade ajuda merda nenhuma quando você não consegue começar a fazer as coisas porque nunca aprendeu a fazer estando sozinho ou sem o feedback e a troca constante.

O lado bom é que eu recebo críticas ao meu trabalho muito naturalmente e não vejo problema em alterar, mudar, redefinir, porque entendo como parte do processo. O lado ruim é que o silêncio faz com que eu sinta que sou o pior do mundo e a facilidade em aceitar críticas também é porque nenhuma crítica que outras pessoas façam vai ser tão dura quanto a minha própria.

O aprendizado mais difícil da depressão (e ninguém te conta isso), acho que das doenças crônicas em geral, é aprender que você não tem a energia para fazer tudo que você quer. Cada projeto desejado pode gerar um esforço que não vou dar conta, diretamente, ou indiretamente, na hora de medir o retorno disso e o efeito disso no meu emocional.

Por isso eu resolvi me concentrar no instagram @saren_escreve (minha mudança de identidade é assunto para um post só sobre isso) , e aqui no blog, em falar das coisas que importam, e em escrever e fazer minhas colagens, meus bordados.

Eu tinha recomeçado um projeto que eu tenho muito carinho. Mas não vou dar conta do trabalho emocional envolvido. Tenho outros projetos rolando que são maravilhosos e estão em fases que demandam mais atenção para contecer.

Começar e falhar é melhor do que não começar. E tudo bem. Quando energia houver, eu volto para lá.

E estou aqui. De novo. Mais focado em escrever sobre besteiras e banalidades e processos. Mas aqui.

~~Libra~~

Eu quero saber tua flor favorita, e o jeito como você dorme quando está calor. Quero te fazer rir em um dia vazio, e te contar que algumas das minhas melhores memórias envolvem chão de tacos de madeira – eu me sinto tão seguro quando piso descalço em tacos de madeira. Quero saber com que animais estranhos você sonha e se tem algum stellium no teu mapa, qual cor de gato acha mais bonita, qual o cheiro mais doce da tua memória.
Quero enlaçar seus dedos nas falanges dos meus dedos e quero contar estrelas deitados em um cobertor no chão do mato e quero rir depois que a gente sair correndo porque um bicho resolveu ver estrelas com a gente e quase matou de susto.
Quero ler com os pés em cima dos teus enquanto você faz qualquer coisa, e o silêncio é uma presença física dividindo um cigarro comigo. Quero falar contigo meio sonado às quatro da manhã no telefone porque você teve um pesadelo e queria ouvir uma voz dizendo que estava tudo bem.
Quero cafés da manhã que se esticam na preguiça da tarde entre almofadas e quero cafés da manhã da óculos escuros na ressaca que nos espera na saída da padaria. Quero te contar as coisas que eu sei sobre a poesia com que as rochas são criadas e as histórias que ouvi da neblina, e quero saber das pequenas coisas que fazem de você a pessoa exata que é.
Quero dançar com você mesmo que eu não saiba dançar e quero sentar de pernas cruzadas, bêbado demais para te acompanhar e te ver dançando com o vazio ou com outras pessoas, quero saber que vinho você prefere e te contar o sussurro que eu escuto dentro do vinho.

Eu te quero. E eu te amo.

E se eu não te perguntar teu nome, talvez seja porque o que me move na tua direção é muito maior que um nome, e as rosas seriam rosas se tivessem qualquer outro nome.

(14 de março, 2018)