ficção relâmpago – madrugada

Quem tinha medo da noite não conhecia aquele espaço de tempo entre o início da manhã e o nascer do sol em que a realidade parecia sombreada de cinza e a realidade resvalava entre as pedras cobertas de sereno do calçamento, quando é preciso, de modo absoluto, não olhar para trás quando escuta passos, porque é muito provável que os passos não sejam de nada visível, e o ar não tem a transparência devida. Ninguém fala do medo das coisas das primeiras horas, como se houvesse um acordo tácito para encobrir essa sensação de erro que som, cor e distância tem durante esse tempo liminar que não é território de ninguém.
Talvez o dia seja de deus e a noite do diabo, mas nesse espaço de tempo que não é nem dia ou noite, é preciso sinos de igreja e cantos para evitar que a vida pegue uma entrada para uma rua que não devia estar ali, uma estrada curvando para o lado errado, uma terceira linha de trilhos que não faz parte do mapa da via. Porque essa hora é de ninguém, e é melhor não falar em voz alta o tipo de medo que murmura por trás do poste, da boca da gárgula afogada de chuva, o que faz os gatos correrem assustados nas vielas, estouros de motocicletas que não estão lá e estranhos usando chapéus onde parece que se esconde uma ausência de olhos e sobrancelhas.
Aprendi a evitar olhar a rua pela janela quando desperto, porque quando se vê certas coisas, elas enxergam de volta. Uma distração, e você enxerga a presença saltando pedaços do mundo que vemos, cada vez parado mais perto, até estar no poste logo antes da prédio.