Emicida e um jeito melhor de ser homem

Eu sou uma pessoa não binária transmasculina. Esse não me declarar simplesmente homem é uma coisa política/filosófica, mas ser homem tbm é parte importante do q sou. Eu já fui mulher, mas não sou. Sou outra coisa, e sou um homem. Uma jornada de Tiresias, que foi mulher por sete anos para ser um homem melhor.

E isso de ser homem pra mim tem muito de curar uma masculinidade ferida pela forma violenta q se espera de ser homem.

É um engano gigante achar que por ser trans uma pessoa não é afetada pela socialização. No meu caso, que sempre ocupei uma zona cinzenta, que sou um homem afeminado, significava ter que me provar “macho” de um jeito autodestrutivo e agressivo. Eu me rasguei inteiro tentando ser o herói de uma história que não era minha, como tantos e tantos caras fazem.

O que eu fiz de coisa idiota para provar que eu dava conta, mesmo que me machucasse por isso.

E os homens públicos, os heróis e personagens e agentes da cultura, reforçavam essas noções. De que homem não expõe sentimento, que resolve tudo na porrada, que não cuida de si nem dos outros.

Nos últimos tempos, eu tenho revisitado e questionado que homem eu quero ser. Quem são minhas referências de força e hombridade.

Emicida é o topo da lista.

Eu gosto demais da música dele, e gosto demais do jeito como se expressa. Eu já tinha essa sensação antes de ver o doc “AmarElo – É tudo pra ontem”, mas agora, aaaaaaah.

Emicida trás uma masculidade outra. Onde a agressividade necessária para viver não gera a reação violenta do senso de superioridade, mas o cuidado e a noção de que temos uma responsa com os outros.

Emicida fala de companheirismo, amizade, de falar de sentimento e sensação com naturalidade. Assumir que chora sem fazer disso um diferencial, mas algo normal.

Até para falar de amor, ele não usa a forma machista que a gente vê tanto na música. Tem uma doçura ali, uma doçura que não se envergonha de ser doce.

Fragilidade, amor e companheirismo como bases de uma masculinidade que nos faz mais, melhor.

Virtuosos como heróis por negar o falso heroísmo suicida que nos impuseram.

Vale inclusive um aparte. Eu estava numa bad sem fim, tão cansado de viver que comentei no twitter que não tinha energia nem de ligar a netflix para ver. Um amigo que também segue a trilha de se reinventar como homem (porque eu tenho a sorte de estar cercado de boy cis que quer ser melhor), e ele disse que ia ver também, que a gente ia ver junto mesmo à distância. Isso me deu a energia para ir ver o doc. Tudo que nóis tem é nóis.

Emicida é acima de tudo, um poeta do cuidado. Tem uma postura despojada nas fotografias, um olhar que é gentil – e gentil quer dizer “da gente”, um de nós, nossa família. O jeito como abraça e toca as pessoas nas cenas do doc grita isso – este é um dos nossos e que sabe o que é ser gente.

A gente precisa de mais homens que falam de sonhos e nascer do sol. E que não fala disso do ponto privilegiado de quem não vê o sol nascer no ônibus, sabe. Porque eu sempre me achei meio trouxa de achar bonito o sol nascendo enquanto eu saia pra trampo, e que meu ódio de trem lotado e capitalismo não deixava o sol menos bonito, sabe.

Emicida e eu temos quase a mesma idade, e meu bairro operário em Mauá não é Vila Cachoeira, e cada lugar é único, sei bem dos privilégios que essa pele clara me comprou, e ainda assim eu me lembro de entrar no Municipal pela primeira vez porque um professor da faculdade decidiu que a gente ia conhecer – porque a gente ia ser professor de arte, tinha que conhecer essas coisas, mas curso noturno, trampando o tempo todo, a gente não tinha grana nem sabia que podia, que tinha o direito de ver, sabe, a gente nunca tinha ido lá, meus pais com quarenta não tinham ido, sabe. O Emicida no palco do municipal de São Paulo é uma coisa tão forte, tão forte, acho que para qualquer um que se permite ver, mas para quem vivenciou esse se sentir estrangeiro nos lugares que deveriam ser de todos é de explodir a cabeça.

Eu me sinto mais à vontade no Sesc Campo Limpo do que no Sesc Paulista, sabe, porque é difícil não se sentir intruso nesses lugares – vim pro centro de São Paulo mas carrego minha história comigo.

E ai está esse homem, falando de respeito aos que abriram caminho e abrindo ele mesmo caminho para quem virá, com uma masculinidade feita de afeto – se deixar afetar, sabe.

A gente precisa muito disso. O homem que eu quero ser é mais Emicida e menos Aquiles.

É um mundo duro demais para a gente ser pedra quando pode ser planta.

A minha vivência não é igual a dele, mas tem uma ressonância gostosa. Quando ele falou da intersecção entre as lutas lgbtq e negra, eu senti essa ressonância validada. E de todo modo, a gente precisa exercitar a admiração por quem segue trilhas diferentes das nossas, de um jeito que não é etnocentrista, não é colonizador. É importante demais.

Quero ser menos Aquiles, e mais Emicida.

Não quero dos homens dentes cerrados e faca em punho. Quero doçura. Cuidar das plantas, do amor, dos irmãos. Quero as pequenas alegrias da vida adulta.

(não, eu não curto a coisa de ficar achando palavra dentro de outra palavra, porque a maioria das pessoas faz isso de um jeito preguiçoso, de rimar amor com dor, sabe. Mas a letra de AmarElo é foda e ele escreve bonito demais, ai eu gosto – assim como a rima mais pobre no lugar certo pode ser a mais bonita)

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