Os territórios de onde escrevemos

É muito tentador discutir a coisa do Cyber Agreste e do Sertão Punk. Menino, em um mundo onde se cobra tanto que as pessoas tenham opinião sobre tudo, e onde, neste recorte específico, você está na categoria de pessoas que sempre tiveram voz… é muito fácil cair nessa tentação.

Mas sabe o que eu tenho a dizer sobre isso? Nada, quem tem a dizer é a Gabriela Diniz, o Alec Silva, Alan de Sá, o Ian Frazer, ou outros autores nordestinos que tem a dizer a respeito (esses foram os que eu li ou vi). E a Lidia Zuin, do artigo que começou a discussão (e que bom que se esteja discutindo isso) e os autores que fazem parte dessa discussão de forma mais direta, por um outro aspecto.

Mas eu fui lendo e fui vendo e fui pensando e me deu muita vontade de falar de umas coisas. Mas essas coisas não tem nada com nordeste não, porque eu não entendo disso. Do que eu entendo é desse meu quintal chamado Grande São Paulo.

Aquilo que vi o povo do sul/sudeste falando em suas distopias, são coisas muito presentes aqui, no sul e sudeste. São questões territoriais daqui que eles projetaram lá. 

Seca

Em 2019, nada é mais paulista do que a seca. A crise hídrica, a estiagem, as pessoas bebendo água pesada porque os reservatórios chegaram nesse ponto mais baixo, do lodo tóxico, do chamado volume morto. A umidade do ar, hoje, está, enquanto escrevo isto, em 23%. Deveria estar entre 55% e 60%. As pessoas desmaiam na rua e os hospitais ficam cheios de gente com problemas pulmonares. Uma estiagem atrás da outra, e as chuvas acontecendo torrenciais em períodos curtos demais para reabastecer as represas.

Isso aqui, seu moço, é a Cantareira em 2014. Aqui em São Paulo, sabe.

Falar de seca no nordeste não faz o menor sentido. A seca é um problema nosso. Mascarado por um governo aliado aos empresários, na mistura entre poder público e privado que é característica das corporações do cyberpunk, com direito a racionamentos de água que não são anunciados, venda de água adulterada nas distribuidoras, manobras políticas para deixar comunidades mais distantes sem água para garantir a água no centro, enquanto alguns ricos o bastante para burlar a lei deixam água potável de poços artesianos ser jogada no meio fio por não ter onde mais acumular essa água… 

Sério, não é um roteiro ficcional gente. São os últimos cinco anos de crise hídrica em São Paulo. 

Eu entendo que gente daqui esteja aflita para falar sobre o tema da seca, porque estamos vivendo isso. Mas não vejo porque buscar secas distantes histórica e geograficamente, quando temos no nosso quintal toda a secura necessária para criar. 

Uma mistura de questões políticas, aquecimento global, destruição do meio ambiente… e toda a ficção distópica baseada na seca acontecendo aqui no meu quintal, no Grande ABC Paulista, na Grande São Paulo. 

O Crime Sacralizado

Eu queria começar falando sobre Gino Meneghetti. Meu avô me ensinou sobre o bom ladrão Meneghetti quando eu era bem criança. Meneghetti, diria meu avô, era um exemplo de cidadão. Indignado com a injustiça e as questões sociais, roubava apenas dos ricos e poderosos, e era um herói com suas fugas espetaculares e histórias aventurescas tanto de roubos quanto de como enganava a polícia – ele tirou um documento falso e com ele conseguiu uma certidão de boa conduta da própria polícia que o perseguia! Meneghetti chegou no Brasil já fichado pela Interpol. Só era violento contra a polícia e os que cometiam maldades com os trabalhadores. Seus filhos se chamavam Spartacus e Lenine, se quiser ter mais certeza do componente de justiceiro social do criminoso. A última vez que foi preso tinha noventa anos de idade. Declarou: “Só me interessa roubar dos ricos, e tirar joias, que são bens supérfluos que só servem para alimentar a vaidade”

Tudo tem um pouco de lenda e um pouco de certo. Mas Gino Meneghetti, imigrante italiano e ladrão profissional desde os dez anos de idade em Pisa, o “Gato de Telhado”, é só um de uma longa coleção de criminosos que podem servir de inspiração a qualquer escritor. Mas ainda mais para qualquer escritor que anda pelas ruas de São Paulo, olhando os mesmos telhados por onde correu o Bom Ladrão. 

Equipamento de trabalho de Gino Meneghetti

Olha, eu vou ser bem sincera. Eu sei que alguém é burguês, mas burguês mesmo, do tipo burguês subtipo safado, quando diz não ter medo da polícia. E com a violência policial e seus números aviltantes, somado ao fato de que onde o Estado não chega, o poder paralelo domina, todo mundo aqui conhece histórias onde justiceiros e monstros se misturam. Humanos, profundamente humanos, traficantes e facções criminosas fazem parte de todo tipo de história. Os computadores roubados da escola e devolvidos pelos traficantes é um exemplo de história que se repete ao ponto de virar um motivo, um tropo. Ou a facção que decide que não quer a polícia no bairro e começa a punir os agressores de mulheres. Ao mesmo tempo, as histórias de terror são infinitas. Não precisa ser Lampião para atirar no chão e mandar que dancem. Pode ser o Juninho, o Cabeça, o Corintiano ou o Santista, o Jeremias ou o Bill. Cortesia do seu traficante local, um pedaço de orelha mandado pelo correio ou uma cabeça em cima de um poste. 

Qualquer fascínio que alguém daqui sinta pela figura do criminoso social é fácil de entender, de novo. Mas ao invés de projetar em outro tempo e local, todo o elemento distópico necessário está bem aqui. 

(eu escrevo histórias que se passam nos 80 quilômetros de favelas do sprawl de Vista, onde César e seus centuriões são o poder verdadeiro, sendo vilão de umas histórias e contratante dos protagonistas em outras, sempre um criminoso poderoso. As descrições de Vista são influenciadas por… Mauá, principalmente, pelos lugares onde eu cresci andando e por aqueles onde vivi sendo professora. Tem um pouco de Seattle e Tóquio, mas tem um muito mesmo de Grande São Paulo)

 O Povo e o Lugar

Você conhece os caiçara? A cultura caiçara é viva, em luta contra os grileiros e cheia de tradições extremamente intensas. Muita coisa da cultura caiçara permanece em coisas que fazem parte do cotidiano desse chão aqui.

E os Quilombos do Cafundó, Fundão, Ivaporunduva, Campinho? Eles ficam todos no sudeste – sul. 

Vale do Jequitinhonha, Vale do Paraíba. O sertão tem o gosto da cana de açucar e da fumaça acre da queimada. Da taipa de pilão e de mão. O cerrado logo ali em frente. As questões sociais gritantes. O artesanato riquíssimo. 

Qualquer um do sudeste que sente necessidade de falar “do povo”, poderia fácil basear um mundo de histórias nesse lugar, aqui tão perto e tão invisível, o sudeste que o sudeste tenta erradicar porque não fica bonito na foto higienista. 

Acho que isso é tão grave quanto essa visão distorcida do resto do país que é muito comum em quem é do sudeste. Existe um apagamento das manifestações populares e da cultura aqui da região, que é muito intenso. Porque “não pega bem”. Porque parece primitivo. Porque é macumba. Porque não é europeizado e não é pasteurizado. O silenciamento de muito do que é parte de quem somos e do que faz o nosso território, porque não se encaixa na narrativa oficial de “locomotiva do país” que depende de uma noção falsa de que os outros seriam “atrasados e primitivos”.

Candombe, Congo, Guarda de moçambique, e essas mãos são de um dos membros da comunidade dos Arturos, de Minas Gerais, uma das coisas mais bonitas que já vi.

Como é que eu posso querer falar do território do outro sem conhecer meu território? Acredito que o chamado por escrever sobre o território é muito forte. O chão como personagem. O meu chão, o do outro, o chão que tá lá longe. Mas é preciso sentir o gosto. Saber o cheiro do vento. E para conhecer longe, eu preciso entender perto.

Eu ainda quero escrever sobre o aracati, porque ele faz parte da minha memória afetiva mesmo eu nunca tendo ido ao Ceará. Mas para eu falar do aracati, preciso entender o vento de viração que trás a chuva por cima da Serra do Mar. A Mata Atlântica é uma floresta tropical que foi quase destruída, e cada pedacinho dela é um mundo. 

Não é que não se possa escrever sobre o longe e o que não se viu. Mas é preciso entender o espírito dos lugares. E como conhecer o longe, se não parar para ouvir os espíritos sentados nas calçadas do meu bairro? Porque seja o que for que eu escreva, vai estar marcado por escarpelinos, favelas, granito cinza, vento de chuva, quaresmeiras, bem te vis, greves e fábricas, o céu pegando fogo. 

Sério gente. O céu pega fogo todas as noites onde eu moro. E para descrever qualquer outro céu, preciso primeiro sonhar este céu em chamas. Para entender os céus de outras pessoas é preciso vestir e dançar este céu. 

Só uma noite comum no meu bairro (mesmo)

Conhecer o movimento do voo das andorinhas das casas que fazem ninho na minha rua me fizeram enxergar os desenhos de voos possíveis em naves espaciais e em demoiselles steampunk. 

Mas olhar o território é desvestir certezas. É olhar as histórias de frente e aceitar o que vai ver. Enquanto ficar arrotando que “non ducor, duco” e repetir slogans ufanistas, não vai viver o território, e não vai conseguir escrever, criar, desenhar ou o diabo que for, com a pulsação local. 

Eu entendo de verdade a ânsia em escrever certas coisas. Coisas de longe, inclusive. 

Estou aqui enroscada em Rusalkas e lendas do leste europeu mais do que nunca. Mas os rios que eu conheço e que vão dar forma para as minhas rusalkas são os rios com que eu cresci, e por mais que eu estude os rios do leste da Europa, o que eu vou escrever vai falar das minhas vivências de bicho fora do lugar aqui, neste espaço tempo. 

Para muita gente paulista, existe um “nordeste mítico” terra dos pais ou avós, parado no tempo da memória da migração. Esses lugares das memórias nos forjam como somos, mas não são os territórios de origem. Essas memórias afetivas são parte do lugar onde estão sendo contadas agora, e falam das vivências deste território, e são projetadas nas necessidades e urgências de nossas vivências neste aqui e agora

No que a minha história moldou meus olhos? 

O que te dá a urgência de escrever algo? Será que não é o tempo de questionar, de onde vem o que te movimenta no sentido de uma determinada criação? Eu entendo muito um paulista querendo escrever de seca e criminosos míticos, porque é a nossa vivência contemporânea. 

Mas se eu entendo porque sinto essa necessidade, seja para escrever uma história que se passe aqui, no Ceará ou em Marte, eu tenho como pesar que aquilo que eu escrever fala da minha história, fala do rio da minha aldeia, antes de falar do território do outro. 

É o se perguntar: porque eu quero contar esta história? E de todas as maneiras de contar esta história, qual será a minha forma de fazer isso? 

E talvez seja no mínimo de bom tom não acreditar que é tudo bem sobrepor meu território em cima do território do outro sem questionar, sem entender o significado disso na vivência do outro.


Sereias e seres das águas I

Eu estou para escrever sobre isso desde aquela bagunça sobre a escolha da atriz do filme da Pequena Sereia. Enquanto tinha gente surtando, eu só conseguia pensar que nada fazia mais sentido: poucas lendas de criaturas meio peixe são européias – a maioria dessas lendas vem de outros lugares do globo, e o esquisito mesmo é ter uma sereia branca. 

Existem sim, muitos espíritos da água nas lendas européias. Mas a maioria deles não tem a forma híbrida que associamos à sereia. Curiosamente, nem as sereias tem essa forma. 

Sereias, Seirênes, eram três mulheres. Ou duas, dependendo de quem conta.  Aglaopheme e Thelxiepeia ou Peisinoë, Aglaope, e Thelxiepeia, ou ainda Parthenope, Ligeia e Leucosia. Existem outros nomes também. 

Ninfas, filha de Aqueloo, o deus-rio, e Melpomene, a musa, ou de outra musa, Therpsicore, ou ainda filhas de Gaia.  

Por aí já dá para saber que não existe uma lenda, um mito, uma história, que tenha uma única versão. Inclusive se alguém dizer que a versão dele é a versão verdadeira/original apenas FUJA PARA AS COLINAS. Dito isso, eu vou seguir daqui contando uma versão da história das sereias, que é a que eu gosto mais. 

Parthenope, Ligeia e Leucosia estavam entre as moças que estavam no campo colhendo flores quando Core foi raptada. Havia outras que estavam lá, mas não vem ao caso desta vez. 

Desesperadas em busca da amiga, pediram que Demeter lhes desse asas para poderem procurar por ela. E lá foram as três voar pelo mundo nessa busca por Core.   

Corpo de pássaro e mulher. Nem de longe peixe. 

A busca levou as sereias até algum lugar no mar depois da Itália. A localização da ilha delas é assunto para muita divagação e discussão. Tem uma dezena de localizações diferentes, mas o que importa é: fica na Magna Grécia. Tem muitas flores. É um lugar bem bonito. E tem uma encosta escarpada, aqueles abismos altos caindo no mar. Zeus deu para elas o direito sobre a ilha.

E elas estavam muito cansadas de voar. E muito chateadas com o rapto da amiga (que a essa altura já não era mais Core, e sim Perséfone). 

Então elas pararam ali, e começaram a bagunçar a cabeça dos marinheiros que passavam. Porque afinal, um homem tinha raptado sua amiga, e sabe o que foi que viram pelos tempos em que voaram pela Hélade, que há quem diga que pediram a forma de mulheres-pássaro para nenhum homem poder se aproximar delas… 

Na Helena, de Eurípides, Helena fala:

“Donzelas aladas, 

virgens filhas da Terra, 

Sereias: com oboé líbio 

ou flautas, juntai-vos a mim 

em meus dolorosos males. 

E enviai, cantoras, lágrimas 

em harmonia aos meus trenos, 

mágoas como as minhas mágoas, 

cantos como os meus cantos, 

para que, lá embaixo, 

em sua noturna morada, 

de mim receba Perséfone, 

além das minhas lágrimas, 

um peã aos mortos – sangrento e sem graça”

*tradução da Clara Lacerda Crepaldi que pode ser lida aqui

E uma mulher raptada, como foi Helena, pede que quem reverbere sua voz? As sereias. 

O fim das sereias também é interessante. Havia uma profecia de que elas só poderiam ficar livres quando alguém passasse por elas sem ser afetado pelo seu canto. Existem duas versões de quem conseguiu essa façanha: Odisseus ou Orfeu. 

O que os dois tem em comum? Eles são heróis que são conhecidos por estarem fazendo o que for para voltar para suas mulheres. (mas isso é uma interpretação minha) Talvez seja esse o ponto todo. De todos os homens que passaram por ali, Orfeu e Odisseus não tinham motivo que fizesse as sereias os odiarem. Talvez, tenha sido por isso que puderam passar. 

Orfeu toca mais alto e mais comovente do que a voz das sereias. Odisseus se amarra no mastro do navio e coloca protetor auricular na tripulação. 

Um deles passa, e então as sereias olham umas para as outras aliviadas. O tempo delas ali tinha chegado ao fim. Então, de livre vontade, elas se jogam no mar. 

Ninguém derrotou as sereias. Elas mesmas decidiram que cumprida a profecia, era hora de descansar. De se reunir com a amiga. 

E esse foi o fim das sereias.

Ou o começo.

pedaço de pêssego 2

Quando trançavam os dedos daquele jeito, podia ouvir o som de asas e tambores, trovões distantes que vinham antes da chuva de verão. 

A primeira batida da alfaia muda a textura do tempo. 

Existe o tempo dos homens e seus relógios, e existe o tempo dos deuses e seus espíritos. Carrega uma chave no pescoço que toca um compasso de relógio sem que flutuem ponteiros, e o ar se faz denso, a a hora se faz viva. 

O estandarte leva de arrasto os maus espíritos, o barulho dos tambores e caixas escondendo o som de cascas de inseto quebrando. As linhas de contas de lágrima e palha e o azul de porcelana. Nenhum mal dali passará. O zumbido de vento escondido no assobio das caixas.

pedaço de pêssego I

Tentativa e erro. As letras escorriam pela vidraça enquanto tentava entender o que acontecia, mas não era o suficiente, não era rápida o bastante para descobrir o que estava escrito antes de terminar de escorrer, antes que a terra pulsasse e fizesse explodir os vidros e os cacos espalhassem pelo espaço levando pedaços de palavras pelo ar.

E como se o tempo mudasse de forma e engolisse a realidade que estava ali um momento antes, de novo, quase igual, só um pouco diferente, as linhas dos ideogramas escorriam pela janela, reflexos de luzes irreais formando a cidade, e o som do estalo uma fração antes de tudo ser pedaço e quebrado e voar, fragmentos de frases soltas no espaço.

E de novo, quase igual. Janela. Palavra. Tremor. Pedaços. 

Outra vez.

Asas e barbatanas

Em maio eu comecei a rabiscar umas coisas envolvendo sereias. Por causa do MerMay porque sim, sou viciada nesses desafios criativos. Ano passado eu comecei a fazer no MerMay um catálogo de criaturas ligadas às águas. Ainda devo levar uns anos catalogando e escrevendo esse material, porque eu sou dessas pessoas que começa pesquisando leões marinhos e termina pesquisando flores dos Alpes suíços, e porque se tem uma coisa que o mundo inteiro tem toneladas de mitos e lendas e folclore, é a água.

A primeira coisa que chama a atenção é que, lembra do caos de terem escolhido uma atriz negra para a Pequena Sereia? O que menos tem no mundo é criatura meio mulher meio peixe européia. Chances são de que se você encontrar uma sereia, ela seja tudo menos caucasiana.

Mas conforme eu fui pesquisando, eu comecei a perceber outras coisas em comum nessas histórias.

Existem criaturas ligadas ao folclore aquático que atacam todo tipo de pessoa, sim, mas são muito poucas.

Sereias? Sereias não atacam mulheres.

Entes folclóricos ligados à água atacam geralmente os homens. E geralmente, é por vingança.

Já tem alguns anos que eu pesquiso sobre sereias. São símbolos muito fortes. Criaturas liminares, que ficam nessa zona fronteiriça entre humano e monstro, criaturas que são meio uma coisa, meio outra, tem uma potência simbólica muito forte de mergulho dentro do inconsciente, dentro de si, dentro de outros mundos, e da capacidade de retornar à superfície, ao consciente, ao mundo cotidiano, trazendo os tesouros do fundo e sem se perder.

Mas de repente me veio essa percepção, da sereia (e outras criaturas mágicas das águas) com minorias sociais. Minorias sociais que são alvos de violência e marginalização, e que são muitas vezes colocadas como surgimento dessas criaturas.

Sereias são definidas a partir da voz. De dar voz para que um crime não seja esquecido, no mito grego e em vários outros. São criaturas que na narrativa atacam sempre os “homens de bem”. Os que perpetuam crimes, especialmente contra mulheres.

E aí eu aprendi que A Pequena Sereia é muito provavelmente uma metáfora sobre homossexualidade/bissexualidade reprimida, talvez uma carta de amor em honra a um amor perdido.

Então lá fui eu. Rabiscando e escrevendo umas coisinhas sobre essas criaturas. Sobre esse estado liminar que me fascina, esse estar no meio do caminho, o batente da porta, o momento antes do sol sair, a tensão superficial na borda da tigela.

Começou para ser um fanzine tipo folheto, como os outros que eu já fiz. Quando vi, estava pensando em talvez 8 páginas. Huuum, melhor 16.

Agora eu estou tentando fechar o projeto como 64 páginas. Indo atrás de como publicar. Procurando ver se consigo algum edital ou faço um financiamento coletivo, ou as duas coisas.

A parte escrita está quase pronta. Tem coisas que ainda preciso definir melhor a ordem em que vão ficar, e tem algumas partes que ainda precisam de uma revisão mais minuciosa.

O que eu estou agora brigando comigo mesma para dar conta é a parte de imagens. Desde maio estou fazendo pesquisa visual e desenhando, mas fazer as imagens finais é assustador.

A ilustração não está ali para enfeitar a página. Ela conta uma história. Influencia e recria. Dá peso ou flutuação para as palavras. É parte do que está sendo contado. “Barbatanas”, como eu nomeei o projeto, é uma história visual.

A imagem para mim é um veículo que é puxado pelas palavras. Meu trabalho artístico sempre teve como referência a palavra. Não tem a riqueza de nuances que alguém que se dedica prioritariamente ao desenho seria capaz de dar.

Como não tenho tempo hábil para fazer umas trinta xilogravuras e mais uns tantos carimbos, vou emular um pouco da estética disso no marcador porque é melhor sair mesmo sem estar perfeito do que ficar morto no campo das ideias.

Como sereia, mergulhar e voltar para a superfície. Trazendo uma história para ser contada.

Melhor tentar e falhar…

Agosto acabou, e eu não cumpri todo o RPGaDay. Primeiro alguns textos ficaram com a formatação esquisita. Depois uns eu perdi mesmo, porque escrevi direto no editor de postagem do app do celular e sei lá que cagada eu fiz. Depois o mês infinito cobrou seu preço e eu só falhei mesmo.

Ainda assim, eu acho que é sempre positivo começar algo e falhar ao invés de só não fazer. Esse tipo de desafio não é fácil de manter até o fim, e ano que vem eu vou ir melhor.

O #inktober é assim. Só consegui fazer todos os dias uma vez. Mas todo ano, outubro é o mês que mais desenho/pinto.

Segue o barco. Vamos fazer o que for possível. O que no momento ainda é bem complicado. Fazem 4 meses desde minha mais recente licença médica por depressão. São três anos já em que ela tem levado a melhor sobre mim, neste longo convívio de uma vida inteira na companhia dela – e ao mesmo tempo, não estive tão viva quanto nesses últimos dois anos fazia mais de década.

Imperfeito e falho. Mas vamos tocar adiante.

Fica aqui o último flash que escrevi e não cheguei a postar, do dia que o tema era Amor.

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Era mais fácil antes. Quando a mente não se perdia em memórias sombrias e era possível acreditar em mentiras cavalheirescas. Quando não era o nobre ou seu nome, quando era só Donny e as ruas tinham todas as respostas. 

Agora seu cabelo estava branco e a marca clara da aliança no dedo tinha desaparecido. O mundo parecia tão novo, tão tomado pelos espíritos das máquinas. As pessoas carregavam telefones pelas ruas e as fotografias eram digitais, e havia tanto movimento e tanto para ser visto, que as vezes só queria entrar dentro de casa e deixar tudo desaparecer, exceto que não tinha uma casa. Ao menos não como o que tinha com Kitty, o apartamento pequeno demais, o sofá cama da sala onde Ed dormia com seus bichos de pelúcia, enquanto pensavam em como conseguir dinheiro para um lugar melhor, a bagunça cotidiana da correria e dos amigos que estavam sempre lá.

A mansão era da família. Ampla, luxuosa, silenciosa e vazia. Gerações já tinham ocupado aquele quarto, e depois dele viriam outras gerações. Exceto que se dependesse dele, não haveriam outras gerações. 

Era uma questão de tempo até que tentassem obriga-lo a ter filhos. Os Swal não poderiam desaparecer só porque tinha se apaixonado pela pessoa errada e estava disposto a permanecer viúvo. Porque não compreendia o mundo que tinha encontrado depois de dez anos trancado nas mãos do inimigo. Porque era difícil o suficiente existir e cumprir suas missões sem ter responsabilidades além delas. Sem ter que amar mais ninguém, sem ter que se dedicar a encontrar novas pessoas e novos significados. 

Sentia a mente velha mesmo que o corpo estivesse no auge, que nunca tivesse sido tão forte, tão preciso, tão capaz de lutar. 

Mas esperavam dele que fosse sábio. E não era sábio. Era só velho e exausto e perdido. 

Escutou como a porta batia no ímpeto com que o outro atravessava os cômodos. A voz exigente colocando em movimento os empregados da mansão, como se fosse ele o senhor ali. Aquele tom permanente de dor no fundo da voz. Afundou mais na cama, mas quase sem perceber, o corpo se moveu para levantar.

Preparou os ouvidos para a pancada da porta, mas a falta de cuidado ao abrir era estudada, medida para não assustar, para chegar sem atrito. Sentado na cama, olhando enquanto o outro chegava e o jeito como falava, as palavras provocando daquele jeito irônico e familiar, e só conseguia pensar naquele cabelo tão escuro contrastando com seu cabelo branco, a energia de ação e presença tão diferente de seu recolhimento e calma. 

Mesmo quando sua própria tribo tinha desistido das buscas, quando sua tia o tinha dado como morto, aquele desgraçado irônico e arrogante nunca deixou de procurar. Mesmo a nação tendo abandonado qualquer esperança de que estivesse vivo, aquele maldito provocador sabia que devia continuar buscando. Havia criado Ed junto com o próprio filho. Mandado equipes de busca. Investigado até encontrar. Até trazer de volta. 

O que tinha restado dele. Seria suficiente? 

Havia sido grosseiro, quase cruel, o amargo escorrendo pelas palavras. O corvo só apontava a verdade, mostrava o vazio de sua auto piedade e continuava ao seu lado, naquele estranho retorno ao mundo dos vivos.  

A paciência não estava nas palavras, mas em sua presença ali, de novo, arrancando de dentro daquele torpor em que caia entre uma missão e a outra, a sombra do harano, do lento desaparecer da mente no vazio. 

A mão em seu ombro, impelindo a levantar, sair do quarto, existir. A ironia das palavras mal e mal escondendo o cuidado com que o tocava, a suavidade dos passos para não ser invasivo, a familiaridade que fazia perceberem o gesto um do outro antes quase de acontecer, o silêncio confortável da companhia enquanto desciam a escadaria e iam para o jardim. 

O verão estava chegando. Dava para sentir no ar o cheiro de chuva chegando perto. Sentados no velho banco de pedra, lado a lado, tomavam sol, e quase era possível esquecer o que estava do lado de fora do jardim.

(Adolf Swal, ahroum Presa de Prata, Lobisomem o Apocalipse)

#RPGaDay2019 – dia 25 – Disgracera (calamidade)

A vitória era sangue e fuligem em sua boca. 

Podia ver os dois magos no chão, a posição antinatural dos corpos arremessados pela magia final de Scor. 

Não precisava ver os olhos do dragão verde para saber que ele estava decepcionado com ela. 

Desceram no campo de batalha, e todos correram até o corpo do companheiro de combates, enquanto ela ia até o cadáver calcinado do assassino de seu mestre. 

Roubar o grimório dele. O último arremedo de conhecimento que poderiam extrair dele. Eles iriam se lançar na compreensão daquele tomo e… 

A sensação mordeu seu estômago. Não haveria “eles” mais. Scor estava morto. 

Porque ela havia mentido. Alterado o plano. Confiaram na liderança dela, e ela os traiu. E agora, seu amigo estava morto. O único humano que nunca tinha dado um motivo que reforçasse seu ódio por todos eles. Ela podia sentir o jeito como os outros olhavam para ela, mesmo que estivesse de costas.

A adrenalina da batalha baixava e a realidade era horrível demais para conseguir absorver. 

Porque tinha feito aquilo? Porque tinha sido covarde e preferido deixar o amigo morrer a se arriscar? Ele esperou pelo reforço da magia dela e esse reforço nunca veio. 

Apesar dos olhares, foi até o corpo dele. O choque havia deixado o resto do bando observando em silêncio sem reagir, e ela começou a falar, sem parar, nervosamente, enquanto arrumava a posição do cadáver, arrumava as roupas dele. Falar com ele. Como se estivesse vivo, como se fossem estudar o maldito tomo do outro mago. 

Mais do que talvez tivesse falado em anos. 

Então soluçou, enquanto arrumava de novo as roupas dele, mas não chorou, só um soluço perdido na respiração. Sentiu a mão leve da elfa em seu ombro. 

— Vai embora. 

Levantou, limpando o manto pesado, sabendo que era melhor sair. Não adiantava ficar. Tinha ultrapassado o último horizonte daquilo que eles poderiam aceitar dela. 

Não era um monstro. Não… a maldição não significava nada, não era? Eles… eles haviam feito aquilo dela… não era um monstro, era?

Abaixou e pegou o grimório de Scor do chão, arremessado longe, abraçando o tomo junto do peito. Podia sentir o olhar deles em suas costas, a decepção, o desgosto, o nojo. Ela era um monstro. Ela era o monstro que haviam dito que seria, quando nasceu. 

Talvez no final tivesse sido melhor se a tivessem matado quando bebê… 

Correu quando chegou na linha da mata. Correu ganindo e grunhindo como antes do mestre encontrá-la e ensinar a língua dos humanos. Como quando era só um bicho nas cavernas. Ele estava morto e era culpa dela. Não havia justificativa, não havia plano, condição. Só seu egoísmo. Só sua covardia. 

Correu caverna a dentro, os olhos procurando conforto no escuro, gritando ainda, os sons ecoando pelas paredes e voltando, a voz distorcida. Correu até cair e rolar nas pedras, se encolhendo para chorar. 

Seu maior inimigo estava morto, a vingança estava completa. Tinha dezoito anos e era uma assassina conhecida, inimiga de homens e elfos, e agora… agora seu único amigo estava morto e as únicas pessoas que ainda a aceitavam se cansaram de suportar aquilo. 

Nasr se deixou chorar até dormir. 

A escuridão fria era a única recompensa que teria por essa vitória paga com sangue.

(Nasr Attary, a bruxa das cavernas negras, meu primeiro personagem de RPG, D&D “da caixa vermelha”)

#RPGaDay2019 – dia 24 – Triunfo

Destrancou o apartamento, sentindo o cheiro familiar de incenso e o fundo estagnado de tabaco que estava impregnado nas paredes. Largou as chaves no aparador, tirou a carteira do bolso e jogou junto, e estalou as costas com uma careta dolorida enquanto, antes de chegar no sofá, parava diante do altar. 

O cervo branco de olhos de fogo, o lobo acorrentado, Nuestra Senora de la Caridad del Cobre, um guaxinim, um gato de porcelana, uma imagem de deusa pré histórica, um quadro bonito da Terra vista do espaço. As coisas da família. Foi acendendo as velas e o incenso, derramando moedas dos bolsos na tigela cheia de doces, bijuterias, gemas falsas, lantejoulas e dinheiro trocado estrangeiro. Antes de mais nada, fortalecer a casa, agradar aos espíritos. 

Só depois disso se arrastou até o sofá, chutando as botas para longe. A regata estava grudada na pele com o sangue seco, mas o chuveiro parecia tão longe. 

Fechou os olhos, respirando fundo para ter certeza de que não tinha nenhuma costela regenerando no lugar errado, e tudo parecia distante e aflitivo, a solidão vazia depois de cumprir outra missão. 

Foi quando a porta abriu com o barulho apressado dos passos, o cheiro adocicado de sabonete e carinho, os braços enlaçando seu cansaço, aninhando sua cabeça contra o peito chamando calmo seu nome. Tentou abraçar de volta e só conseguiu segurar mal e mal a camisa de Rafael entre os dedos.

O lobo menor falava manso enquanto o livrava da calça justa, os rasgos e a sujeira de sangue e lama dificultando. Uma batalha que valia a pena era aquela onde o inimigo era forte o bastante para o risco ser real. Ele tinha saído vitorioso do outro lado, mastigado, cansado, abalado talvez. Mas vitorioso. 

Deixou que o lobo menor o levasse por onde queria, o chuveiro quentinho nas costas, desgrudando a regata da pele, terminando de despir, falando daquele jeito que usava quando era preciso apontar o caminho da realidade. Ouvir aquela voz era às vezes tudo que restava entre o lobisomem e a insanidade. Entre a mente de Chuva e os sons e cheiros do passado que se sobrepunham a tudo quando outro flashback impedia o ar de entrar pela garganta. 

Sentiu os braços de Rafa impedindo que caísse, o jeito como se esticava para conseguir abraçar o corpo magro e trêmulo. Chuva abraçou de volta, forçando o ar para dentro dos pulmões para conseguir respirar, se manter no presente, retomar o fôlego.  

A toalha esfregada contra a pele forçava a mente de volta para o corpo no momento presente. Trincou os dentes, se forçando a apoiar o peso do corpo nas pernas direito. Concentrar a mente na voz do outro lobisomem. Na verdade simples do convívio tão bom entre os dois, apesar de tudo que poderia impedir, de toda a proibição, da pecha de crime sobre o que havia entre os dois. 

Estava ali. Com seu lobo. Em seu lugar seguro. Depois de encontrar vitória em combate. Não era um filhote sem defesas. Era o alfa da matilha. Era o sangue dos inimigos escorrendo das garras e era a música no violino manouche. Ele sabia quem era, e onde estava e ninguém mais tiraria isso dele. 

Rafael acariciou seu rosto, em um reconhecimento silencioso da luta interna que travava, aquele olhar de orgulho pelo que via – Chuva amava sentir aquele olhar mais do que tudo na vida. 

Não era a arrogância pública e os olhares de admiração na assembléia, não era o uivo de vitória quando acabava a batalha, ou a energia pulsante com que se entregava à luta. Não era a aprovação dos líderes e o reconhecimento dos outros lobos. Não, nada disso o definia. Tudo isso era só a neve antes do degelo da primavera. 

O olhar de quem ele amava, o jeito como o guiava de volta para o presente, a força que aquela voz transmitia para que pudesse reencontrar o próprio passo. Aquele era o maior triunfo. 

Em um mundo feito de neve e flutuação, aquele olhar eram os dentes de leão brilhando amarelos e teimosos na neblina matinal da floresta. 

(Chuva Sangrenta, ahroum, Cria deFenris, Lobisomem o Apocalipse)

#RPGaDay2019 – dia 3 – Engajar

3 Engajar

A realidade da matriz com suas propagandas brilhantes e adereços virtuais sobre as construções se sobrepunha à cidade suja e chuvosa, com o céu que um profeta tinha comparado a uma televisão fora do ar. A frase não fazia o menor sentido, mas sua coleção de filmes do século anterior tinham dado uma boa noção do que significavam as palavras. Coisas anteriores a trídeos e BTL chips, e só de pensar em BTLs sentiu os braços coçarem, porque seria tão fácil conseguir as sensações que a magia dos dragões tinham roubado dela se usasse um chip…

<Maldição, Mormegil. Quanto tempo para chegar aqui, omae?>

Oh porra.

<Eu tenho 300 segundos para chegar ai, segura esse cu.>

Passou a mão sobre o disco dourado na têmpora, os desenhos geométricos em relevo, por puro hábito. O equipamento que precisava estava dentro do crânio, inserido da forma mais cuidadosa para evitar a perda de muita massa cerebral. Fez um último alongamento antes de encaixar o corpo no espaço seguro no topo do prédio, e acendeu o cigarro por puro hábito, quase sentindo a magia que impedia o efeito químico da nicotina acontecer.

Acionou os drones, unindo sua mente ao menor deles, o pequeno dragonfly que era só a carenagem do que um dia havia sido um drone comercial, cada milímetro do mecanismo recriado pela fusora.

A realidade agora sim fazia sentido. Os sensores do drone faziam com que se sentisse inteira, dezenas de sentidos diferentes sobrepostos, temperatura, ecolocalização, eletromagnetismo, camada sobre camada de informação, e o mundo fazendo mais sentido.

240 segundos, e podia distinguir a forma dos outros runners se aproximando das posições.

Tinha aquela pixação das regras de ser um shadowrunner que tinha ficado famosa. Ela resumiria tudo a “nunca é fácil como dizem que vai ser”.

190 segundos. Colocou os drones aéreos em modo automático em suas posições, e começou a mover seu amigo discreto pela fachada do prédio. Uma pequena lacraia. Um artrópode em uma cidade suja e salgada de mar, nada incomum. Ou parecia, visto por fora, quando as pessoas olhavam com nojo o dronezinho parado em seu ombro.

Não exatamente o mesmo, porque esses merdinhas tinham uma tendência a serem esmagados em runs que deveriam ser muito fáceis.

Entrou pelo vão da janela, raspando a carenagem no espaço estreito, uma sensação desagradável se refletindo nas costas que se arrepiavam a uma centena de metros dali. Parou a vinte centímetros da porta, escondida pelo tapete que valia fácil o mesmo que o pulgueiro inteiro onde ela morava. Iniciaria a gravação no instante em que a luta começasse. Nada melhor do que deixar alguém nervoso para que desse com a língua nos dentes.

Voltou para o dragonfly. 70 segundos.

<Melhor as crianças terem chegado ou eu vou chutar a bunda de um por um.>

A voz eletrônica não vinha de sua garganta, mas soava de um jeito bem convincente. Tinha gasto bastante tempo fazendo aquele programa para simular os detalhes de sua entonação ao criar mensagens de voz no comm dos outros.

Escutou o som. Sabia pelo grito de guerra sem sentido seguido da explosão de riso que o troll tinha começado a brincadeira no chão. 40 segundos.

Acionou as sequências de comandos de cada um dos drones. Os programas de inteligência tática que tinha preparado para aquele momento. Podia sentir as correias de bala sendo acionadas como teste.

No chão, a correria e o barulho não eram problemas dela. Os meninos eram bons. Sabiam se proteger. Sabiam fazer o trabalho. Eram seus meninos, afinal.

12 segundos. Na realidade amplificada pelos sentidos eletrônicos, isso era um tempo enorme de espera. Tempo suficiente para pensar nele, para ter esperança de conseguirem se ver outra vez, para pensar no cheiro e no tom da voz e em como era sentir o corpo dele pelos sensores do quarto que dividiam antes dos dragões entrarem no caminho.

5 segundos.

Deu um zero negativo por motivo nenhum, só para ser vista com estilo e não com um simples movimento para o lado. Saltou de altitude, disparando uma rajada.

3 segundos.

Podia ver os inimigos vindo em sua direção.

Sentiu a adrenalina fazendo o coração acelerar. Pelo menos a sensação do instante em que metal se chocava com metal e a vibração das balas cortava o ar, o som explodindo direto nos sensores de som, o brilho explosivo que fazia os sensores visuais e luminosos precisarem mudar de espectro para não queimar, pelo menos aquele high a magia dos dragões não podia roubar dela.

(Moira “Mormegil”, elfa rigger, Shadowrun)

#RPGaDay2019 – dia 2, único

Ergueu os olhos, observando a escuridão confortável em que a abóbada da caverna desaparecia. Estavam muito fundo e, suspeitava, do outro lado do véu Havia um burburinho baixo, e ela conseguia distinguir os trevos que cobriam o chão. Continuou andando, e ali estava, deitado de um jeito confortável, enrodilhado em seu berço de trevos que quase o cobriam, dormindo pesado, hibernando como em um inverno que não chegava ao fim. Ela afagou o pelo macio do espírito adormecido. Uma parte dela só conseguia pensar em como um coelho, por mais fofo que parecesse, ainda seria um oponente perigoso se tivesse três metros, como o espírito parecia confortável em se manifestar.

Mas sabia que ninguém além dela poderia reabrir aquele caern, despertar aquele espírito, trazer de volta os lobos e reerguer o septo. Não porque fosse especial, mas por um pouco de sorte e uma jogada do destino. Que o caern estivesse na propriedade familiar que herdou do pai, abandonada desde que o velho tinha ido embora de lá, o ponto de poder perdido por um século, desde que a casa do Uivo Austero começou a se perder. Que fosse uma Fúria Negra e tivesse conseguido respeito dentro da tribo apesar de seu nascimento proibido e estéril, que pudesse trazer para perto guerreiras do tipo que um lugar como aquele precisaria.

Talvez fossem os dias finais. Mas não podia negar o prazer único de ver ruir as tradições e refazer tudo, contrariando o jeito de agir dos anciãos e trazendo de volta o tempo dos heróis com as próprias mãos.

Estralou os dedos. Podia sentir como suas irmãs de tribo se aproximavam, e ia fazer o ritual para fazer aquele coelho acordar mesmo que isso arrancasse o lobo de dentro dela.

(Leila “Lua Vermelha”, Lobisomem o Apocalipse)